Narrativas Invisíveis: A Experiência dos Muçulmanos Africanos nas Américas Coloniais

An editorial from Associate Editor Lucas Vicente. English version also available below.

8/30/20235 min read

Qualquer pessoa interessada em estudar a presença de comunidades muçulmanas nas Américas nos séculos XVI e XVII encontra um desafio que pode ser desanimador para alguns e estimulante para outros. A quantidade de trabalhos disponíveis é limitada, e as fontes disponíveis são escassas e de difícil acesso. A busca por uma perspectiva de história "vista de baixo" se transforma, assim, em um exercício investigativo por si só.

Quem eram essas pessoas? De onde vieram? No que acreditavam? Como se comportaram diante da restrição de suas liberdades individuais? Refletir sobre o Islã nas Américas implica também em considerar os africanos escravizados como agentes históricos, capazes de impactar o mundo ao seu redor por meio de suas ações, apesar de sua condição social. Explorar essas narrativas contribui para a formação da identidade da pessoa negra nas Américas contemporâneas como um todo.

Os registros referentes aos escravizados são incontestáveis. Grupos de pessoas muçulmanas Jalofas foram removidos em grande número da África Ocidental e se instalaram em várias regiões, desde o Canadá até o Uruguai. Comunidades completas estabeleceram-se com estilos de vida distintos, influenciando a prática do Islã de maneira singular, mantendo, contudo, fidelidade aos cinco pilares fundamentais da religião.

Relatos inquisitoriais acerca da presença de muçulmanos escravizados em Portugal demonstram que eles conheciam e repetiam com frequência a Shahada. Discorriam sobre a vida de Mafamede (Maomé) e estabeleciam versões locais do Zakat. Tentavam escapar para as chamadas "terras de mouros" para viver em conformidade com os preceitos de Mafamede e também demonstravam respeito pela veneração de um homem conhecido como Cide Belabes.

Entretanto, o que sabemos sobre a presença muçulmana na América portuguesa? No contexto luso-brasileiro, autores como João José Reis argumentam que os escravos muçulmanos na Bahia eram notórios por sua tendência à rebeldia, pelo menos antes de 1835. É necessário ir além dessa perspectiva e questionar essas afirmações, inspirado em trabalhos como o de Aysha Khan, que argumenta que essa visão dos escravizados muçulmanos africanos como inerentemente rebeldes funcionou como uma forma de controle colonial. No entanto, como os muçulmanos africanos que viviam no Brasil percebiam essa dinâmica? E como a religião conseguiu persistir dentro do contexto colonial católico ao longo das gerações?

Analisar a América espanhola no contexto dos africanos muçulmanos desse período é tão intrincado quanto no caso português. Os esforços empreendidos na Espanha para extinguir práticas muçulmanas também ecoaram nas regiões do outro lado do Atlântico. Apesar disso, essa comunidade resistiu e coexistiu com o ambiente moldado pelo poder oficial espanhol, sob o qual viveram como escravizados em países como México, Cuba, Colômbia e outros.

Karoline Cook explora a visão das autoridades coloniais espanholas em relação aos africanos muçulmanos. No entanto, é importante considerar como esses africanos se viam a partir de sua própria perspectiva. Como eles desenvolviam estratégias de adaptação? Como incorporavam os pilares de sua fé no ambiente coercitivo? Uma questão intrigante é por que o Islã, ao contrário de outras religiões africanas, não evoluiu para uma religião afro-americana, como ocorreu com o Candomblé?

Assim, cabe à nova geração de historiadores interessados nessa temática, eu inclusive, expandir os limites do conhecimento historiográfico. Direcionar o foco de suas pesquisas para essas questões sob uma perspectiva decolonial. Observar a partir da perspectiva dos próprios africanos muçulmanos que viveram nas Américas durante os primeiros 200 anos de colonização em busca das respostas.


Invisible Narratives: The Experience of African Muslims in the Colonial Americas

Anyone interested in studying the presence of Muslim communities in the Americas in the sixteenth and seventeenth centuries encounters a challenge that can be daunting for some, stimulating for others. The amount of available work is limited, and those that are available sources are scarce and sometimes difficult to access. The search for a perspective on history "from below" thus becomes an investigative exercise in itself.

Who were these people? Where did they come from? What did they believe in? How did they behave in the face of the restriction of their individual freedoms? Reflecting on Islam in the Americas also implies considering enslaved Africans as historical agents, capable of impacting the world around them through their actions, despite their social condition. Exploring these narratives contributes to the formation of Black identifications in the contemporary Americas as a whole.

The records concerning the enslaved are indisputable. Groups of Muslim Jalofes were removed in large numbers from West Africa and settled in various regions from Canada to Uruguay. Whole communities established themselves with distinct lifestyles, influencing the practice of Islam in unique ways, yet maintaining fidelity to their faith as they were able.

Inquisitorial reports about the presence of enslaved Muslims in Portugal show that they knew and often repeated the Shahada. They discussed the life of Mafamede (Muhammad) and established local versions of Zakat. They tried to escape to the so-called "Moorish lands" to live in accordance with the precepts of Mafamede and also showed respect for the veneration of a man known as Cide Belabes.

However, what do we know about the Muslim presence in Portuguese America? In the Portuguese-Brazilian context, authors such as João José Reis argue that Muslim slaves in Bahia were notorious for their tendency to rebel, at least before 1835. It is necessary to go beyond this perspective and question these claims, inspired by work such as that of Aisha Khan, who argues that this view of enslaved African Muslims as "inherently rebellious" functioned as a form of (post)colonial control. However, how did African Muslims living in Brazil perceive this dynamic? And how did the religion manage to persist within the Catholic colonial context over the generations?

Analyzing Spanish America in the context of Muslim Africans during this period is as intricate as in the Portuguese case. The efforts undertaken in Spain to extinguish Muslim practices also echoed in the regions across the Atlantic. Despite this, this community resisted and coexisted with the environment shaped by official Spanish power, under which they lived as enslaved people in countries such as Mexico, Cuba, Colombia, and others.

Karoline Cook explores the view of Spanish colonial authorities towards Muslim Africans. However, it is important to consider how these Africans saw themselves from their own perspective. How did they develop adaptation strategies? How did they incorporate the pillars of their faith into the coercive environment? An intriguing question is why Islam, unlike other African religions, did not evolve into an African American religion, as Candomblé did?

Thus, it is up to the new generation of historians interested in this theme, myself included, to expand the boundaries of historiographical knowledge. In particular, it encourages us to focus our research on these issues from a decolonial perspective. In other words, to look from the perspective of the African Muslims themselves who lived in the Americas during the first 200 years of colonization in search of answers.